Artigo: Livre iniciativa? Mas e o coletivo?

A notícia veiculada em todos os meios comunicando o arquivamento do Projeto de Lei (PL) nº 069/2023, o qual propunha a restrição da monocultura, a exemplo de soja e cana-de-açúcar, no Pantanal, deve merecer uma reflexão em respeito à propositura do saudoso deputado estadual Amarildo Cruz à sociedade e ao nosso futuro.

A história de Mato Grosso do Sul e seu desenvolvimento é marcada por atos de coragem, especialmente pelos visionários. A capacidade de tomar decisões e enfrentar as reações daqueles que, na ignorância dos fatos, reagem, demonstra a maturidade e a responsabilidade com o coletivo.

Diante de tantos desafios na área do meio ambiente, tomar a decisão de criar um parque de proteção à natureza, restringir a pesca em lugares sensíveis e aprovar uma lei de pagamento por serviços ambientais são escolhas que sobrepõem o privado em benefício do coletivo.

Uma decisão histórica, em 1977, dividiu o então Mato Grosso em dois e fraturou ao meio o Pantanal.

Somente após 20 anos conseguimos sentar juntos no Refúgio Ecológico Caiman, local que dá nome à Carta Caiman, com a presença dos dois governadores (de MS e MT), os quais, em decisão inédita, se propuseram a conduzir o futuro do bioma de forma integrada com o Patrimônio Nacional, lapidado na Constituição. Infelizmente, dos compromissos assumidos, pouco evoluímos nessas tratativas conjuntas e cada estado segue tomando decisões fragmentadas.

Recentemente, mesmo detendo um terço do Pantanal, Mato Grosso deu um passo importante para seu futuro ao aprovar, na Assembleia Legislativa de MT, a Lei nº 11.861/2022, que assegura melhores condições para a pecuária e restringe o que ameaça o bioma, como a soja e a cana, fruto de um amplo debate no qual a ciência e a sociedade foram ouvidas.

Já em Mato Grosso do Sul, tropeçamos na história em detrimento do interesse coletivo assegurado na Constituição. Motivada pela justificativa de manter a livre iniciativa, a Assembleia Legislativa de MS pautou a decisão prematura do arquivamento de um projeto de lei encampado pelo deputado Pedro Kemp.

Poderíamos ter aberto uma ampla discussão com a ciência – na qual o Estado detém inúmeras universidades altamente qualificadas – e com a sociedade civil organizada – na qual inúmeros programas hoje asseguram a proteção da pecuária, como a ABPO (Associação Brasileira de Pecuária Orgânica), da biodiversidade e do ecoturismo.

A necessidade indiscutível do debate deve ocorrer simplesmente pelo direito de todos escolherem o futuro de nosso estado, no que tange, especialmente, ao seu maior ativo ambiental: o Pantanal. Este é o papel emblemático e histórico da nossa Casa de Leis.

Foi essa energia legítima que, em 1982, motivou o então governador visionário Pedro Pedrossian a impedir o Projeto Bodoquena, que permitiria o plantio de cana-de-açúcar e a instalação de uma usina de álcool na região de Miranda. Não foi somente coragem, mas também o privilégio, como visionário, de poder olhar o futuro do Estado.

Cabe registrar que a região em pauta cria, atualmente, mais de 150 mil cabeças de gado e possui uma das mais altas biodiversidades – e, muito provavelmente, a maior concentração de onças-pintadas do mundo. A localidade poderá, a curto prazo, receber por crédito de biodiversidade.

Cabe esclarecer que o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), isto é, a Lei nº 3.839, de 28 de dezembro de 2009, citado também na motivação do arquivamento do Projeto de Lei nº 069/2023, apenas norteia e subsidia as tomadas de decisões na gestão territorial para o desenvolvimento. Ele, inclusive, ouvindo a ciência, orienta a política agrícola alinhada com as bacias hidrográficas.

Esse foi um avanço de MS ante MT, que ainda não aprovou o seu ZEE – portanto, não impõe restrições. Não se justifica igualmente usá-lo como justificativa para o arquivamento do PL nº 069/2023.

Será que alguém leu? Se tivesse lido, o projeto seguiria o trâmite, afinal, a recomendação do documento para a planície e o Chaco é clara: pecuária extensiva. Vou finalizar citando Manoel de Barros: “Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo”.

*Artigo do presidente do IHP, Ângelo Rabelo, publicado na edição impressa do jornal Correio do Estado de 10/04/2023 e na versão digital e também no site Campo Grande News.

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